22 julho 2013

Um estranho problema de repetição



            Um estranho problema de repetição é se ver outro nos mesmos lugares e situações. É se ver estranho às coisas ao redor que antes eram tão comuns. E então pouco se suporta: é difícil aceitar o mundo parado enquanto você em pleno movimento. Repetição de falas, repetição de caras, repetição de fatos, mas que não mais ressoam em você, simplesmente passam e quase matam... de tédio. Tédio, então cansaço, então enfado, então sono. E você vibrando fortemente em outro tom, afinado com outras vozes, vendo outras coisas naquelas mesmas coisas ainda as mesmas.
            Você olha pro teto, procura uma saída, olha pros lados, não vê opção. Finge que ouve, se põe civilizado, quando de fato o que queria era mandar tudo pra merda, ou seja, tudo pro seu devido lugar: esse passado não passa da merda que você caga e descarga, lava as mãos e vai embora.
            Ir embora, sempre indo, não parando e você vai sempre se fazendo estranho aos mesmos mesmos nesse estranho problema de repetição.

09 julho 2013

in memoriam



Mecanicamente eles repetiam:
“Bem-aventurados os que promovem a paz,
Palavras do Senhor, Graças a Deus...”
E saindo do templo já se iam
Brigando entre si, brincando de deus.

E não satisfeitos com o poder outorgado,
Criavam mais regras e bulas papais,
Criando mais guerras e cada vez mais
Fazendo do povo um mero seu gado.
Até hoje o fazem, sem pena nem dó.

Há tantos mil’anos há tantos estragos,
há tantos destratos, há tantos enganos,
que não se estranha que o rebanho ande magro
e que o santuário junte tanto mais pó.

 Umbelino Neto,
à "Velhice do Padre Eterno, 1885"

08 julho 2013

“Fica?”



Deles sobraram lembranças e fantasias do que foi e do que podia ainda ser: uma transa naquelas escadas escuras do hotel, para o estupor de um transeunte desavisado. Conversa sensual, palavras instigantes, aventuras verbais. Momento intenso, mas fugaz. Intensidade da pressão que o relógio fazia anunciando o nascer do sol: acabaria por ali, não havia muito tempo. Deveriam sorver cada segundo daqueles beijos, inspirar cada centímetro daqueles toques. Olhar cada brilho de cada olhar: olhar raso nas curvas da juventude de cada um, olhar fundo nas palavras de seus porquês. Enfim ali se conheceram um pouco, enfim ali um tanto se alegraram. E o dia findou antes que o sol nascesse.