27 setembro 2022

vou tomar um chá no jantar em noite de Lua Cheia

olá seu moço, eu sou um leva e traz
aplicador de método dos meu capataz
o que mandar eu tô levando
o que for de buscar eu tô trazendo
e hoje eu vou ser o teu soldado
hoje eu vou ser o teu sargento
infantaria de guerra na luz ou na escuridão
daquilo que sai de dentro da tua testa
ou dos planos incalculáveis da grande Imensidão!

me diga, seu moço, qual é a boa?
me diga, meu capitão, qual é a tarefa?
me diga, meu camarada, qual é a missão?

meu sargento de armas, meu bom companheiro
primeiramente quero agradecer a tua boa disposição
e segundamente lamentar mais essa suja missão
mandamos teu pelotão mais uma vez pra se embrenhar nuns lamaceiros

mas vamos lá, aos corres e finalmentes
pois na Imensidão tudo tem seu tempo e apropriado momento
e a hora é agora

um salve ao meu sargento de armas
saravá a toda sua equipe
vamo simbora, vamo trabalhar

escuta bem meu sargento
que isso aqui pra ti e teus brabo
isso vai ser melzinho na chupeta

a missão é a seguinte...

método da indução, técnica do catalizar
botar lenha na fogueira 
e a brasa que já tiver acesa... ventilar
vamo botar os elemento no fogo e um pouco esperar 
vamo fazer aumentar a pressão
pra depois ouvir o papoco

vamo ajudar a cada um ser mais com força o que cada um é
vamo ajudar essa molecada a tirar as suas máscaras
vamo pegar o brilho e força da Lua Cheia 
e fazer uma maré cheia dentro de cada um
vai haver uma ressaca do mar humano
esse que vai do ventre, ao estômago até o peito
e ajudar a cada um ser do seu próprio tamanho
ajudar a cada um ser muito mais verdadeiro

o que vai se assuceder 
eu vou assistir de camarote 
e de longe tomar um chá
já vou botar minha água no fogo
até ouvir a chaleira piar

o cabra safado vai ser bem safado
o cabra da peste vai ser bem da peste
a flor do agreste vai ser bem agreste
a maria bonita vai ser bem bonita
a mulher macho sim senhor vai ser muito macho sim senhor

o bicho orgulhoso vai ser mais orgulhoso
o bicho nojento vai ser mais nojento
a bicha velha vai ser mais velha
a bicha besta vai ser mais besta
a bicha traiçoeira vai ser muito mais traiçoeira

vai ser uma prova, vai ser um teste
igual em sala de aula
ninguém fala com ninguém
sem direito a consulta
cada macaco no seu galho
cada um com sua própria verdade
e a sua própria dúvida
cada um com sua própria luta
e a sua própria loucura
cada um vai dar o que realmente tem pra oferecer

o que vai se assuceder 
eu vou assistir de camarote 
e de longe tomar um chá
já vou botar minha água no fogo
até ouvir a chaleira piar

o safado vai dar muita safadeza
o peste vai dar muita pestilência
o agreste vai dar muita agrura
a bonita vai dar muita boniteza
a machona vai dar muita macheza sim senhor

o orgulhoso vai bater no peito e levantar a cabeça
e vai querer ser o chefe da mesa

o nojento vai escarrar no prato que comeu 
e morder a mão que o alimentou
e ainda vai vomitar por cima da mesa

a velha vai lembrar de coisa antiga
que tinha sido esquecida 
mas que no tempo dela
fazia parte do dia a dia
e ninguém se tocava nem percebia
que aquilo não prestava

a besta vai ser a maior brabeza
vai falar sério e grave e grosso
como se nunca se viu nessa mesa
e pela primeira vez ela vai deixar de ser besta
e se deixar ser quem ela é 
a besta vai ser ela mesma

a traiçoeira vai envenenar a sobremesa
e oferecer ao chefe e dono da certeza
vai servir de bandeja uma leitoa nova
assada com um lacinho na cabeça
e o safado vai morder com toda a safadeza...

cada um e cada uma vai comer de sua parte
e vai ser essa janta às claras como noite de Lua Cheia
vai ser, sim senhor, o que cada um pode ser
vamos ver, sim senhora, o que eles têm pra oferecer
e a verdade de cada um e de cada uma vai
vai finalmente e para todos vai 
vai e como vai 
vai aparecer

o que vai se assuceder 
eu vou assistir de camarote 
e de longe tomar um chá...
já vou botar minha água no fogo
até ouvir a chaleira piar

e tudo isso vai ser como tiver que ser
mesmo que seja a maior vergonha
mesmo que seja a maior tristeza
mesmo que seja a maior revolta
porque não se faz uma omelete sem quebrar a casca do ovo
não se faz um bom assado sem matar um boi bem novo
o carneiro vai berrar, a ovelha vai dizer mé
e que assim seja
conforme seja o grande cálculo da Imensidão




26 setembro 2022

sobre aquilo que sempre depende

o amor que se deseja, 
é semente que se planta
você cuida da terra pra não ficar seca
senão a mudinha seca

o amor que se começa, 
é mudinha que se protege
que se planta no seu cantinho próprio e seguro
precisa de sol, precisa de vento
precisa de água, precisa de terra
mas cada coisa no seu devido tanto
cada coisa no seu devido tempo

o amor que se ama amando, 
é árvore que se sustenta
que aguenta ventos fortes, 
muitas chuvas ou até períodos de seca
mas sempre... sempre e ainda, sempre...
não sobrevive sem cuidados
porque depende do nosso sustento
pede água e poda correta
pede solo limpo, outras plantas e animais por perto
pois nenhuma árvore sobrevive sozinha no deserto

o amor que prossegue, 
é como tu quando come, come, come e cresce
então precisa trocar de pele 

o amor pode ser árvore alta
e voltar a virar pequena muda
o amor pode ser fera adulta
e voltar a ser apenas ovo

o amor pode viajar no tempo
e dobrar todas as curvas do espaço
o amor é retidão no caos
o amor é caos na monotonia

todavia, 
de tudo nesse mundo
o amor é aquilo que temos de menos garantido
o amor nós nunca possuímos
porque o amor sempre depende
o amor, meu amigo, vou repetir
o amor sempre depende
sempre depende
de tudo o que se dá e de tudo o que se recebe

a Lua Nova chegou
com a sua poesia
do Pôr do Sol ao Alvorecer
hoje vai ter cantoria

vamo cantar
pro amor chegar
pro amor descer
do alto do altar

vamo cantar
pro amor subir
pro amor cair
na cama do amar

matei um gato
joguei no mato
três pombas giraram
no meu quintal
uma branca, uma cinza e uma preta
pra elas eu dei três pedras de sal

o gato novo miou
o passarinho cantou
a galinha acocou
e três ovos chocou
vamos dar de comer
pra cobra coral

a Lua Nova chegou
com a sua poesia
do Pôr do Sol ao Alvorecer
hoje vai ter cantoria

vamo cantar
pro amor chegar
pro amor descer
do alto do altar

vamo cantar
pro amor subir
pro amor cair
na cama do amar


-- ao meu amigo Formiga quando viajamos no tempo e retornamos da guerra

23 setembro 2022

como é o amor na dieta

o amor que se ama amando é leve
é de fácil digestão
traz diversão
e traz reflexão
tem pimenta e azedo
às vezes amargo até

mas não é só pimenta
não arde o tempo todo
é só uma picância pra ressaltar os temperos

não é azedo demais
é só o suficiente pra fazer salivar mais
e querer mais uma mordida ou chupada

não é amargo do tipo gosto de queimado
é amargo do tipo café recém-passado
cheiroso e equilibrado
pra equilibrar o doce e o salgado inerente desse elemento
que chamamos de sentimento...
mas é o nosso sustento diário
verdadeiro alimento

Amor
tranquilo, solto e ventilado
tesudo, seguro e alegre
por mais amor na nossa dieta

22 setembro 2022

o dia que o galo vai botar um ovo

morreu uma criança trouxa
vamos acender uma vela
nasceu outra criança trouxa
vamos fazer uma festa

morreu um cabra safado
vamos fazer uma festa
nasceu outro cabra safado
vamos acender uma vela

se morreu, que seja sepultado
e receba um adeus
se nasceu, que seja abençoado
e receba os parabéns

no dia que não tiver mais nesse mundo
nem criança trouxa
nem cabra safado
o galo vai botar um ovo
e bater palma no aniversário do pinto do seu pai
a raposa velha vai casar com a galinha nova
e as duas vão engravidar de uma ninhada de três gatos
vai nascer um vermelho, um preto e um pálido
e ao invés do parabéns pra você
o galo vai cantar uma marcha fúnebre
e tudo isso pra tristeza do pinto 
que vai chorar de um olho só sorrindo

e assim vai ser
no dia que nesse mundo não mais nascer
nem criança trouxa nem cabra safado

18 setembro 2022

a receita da reciprocidade

meu nome é Lua Nova das Nove Almas
fiz do fogo vivo da fogueira a minha morada
uma monstruosidade que me impuseram
há muitos séculos quando me arrastaram de casa
e me arrancaram da cara 
a pele, a carne, os cabelos e a própria cara
e qualquer resquício de uma passageira vaidade

hoje eu me banho no fogo
aprendi a ser fogo
pois me refiz no fogo da recriação
minha fogueira queima no ventre e no peito
cuspo fogo e eu grito
ecos da minha liberdade de ser quem simplesmente sou
sou por todos os séculos que foram, que estão sendo e que virão
e que já chegaram e passam e vêm e vão

minha fogueira ainda brilha 
e aquece os corações e camas frias das minhas irmãs
se até uma atrocidade você sofreu, eu te digo: você não está sozinha
eu também
eu também é o lema de todas nós
nesse mundo reinado pelas cagadas e destemperanças dos reis-criança
que nos deixam a iniquidade de herança 
mundo onde pesa muito mais o lado macho da balança

não conheço ninguém que nunca tenha levado pancada 
quem bate costuma esquecer 
quem apanha sempre se lembra
mas a vida é uma coisa recíproca
quem bate também apanha

vou te ensinar, minha irmã
existe a receita da reciprocidade:
devolva o que não é seu
cada um 
só dá 
o que é realmente seu

eu queimo e ardo e a tua raiva vou alimentar
eu sei que isso te incomoda, irmã
mas também sei que vai te mobilizar
na direção do que é seu
da vida sua
da sua própria vida
pra tu aceitar a tua face impura

podem me chamar de bruxa
danço leve na corda bamba 
da sanidade e da loucura
te ensino a ser puta, a ser filha da puta e puta velha
te ensino os mistérios da putíssima trindade
de mulher baranga, de mulher refinada, de mulher que deixa saudade
aquela que cala, que ouve e que aconselha
aquela que afaga, que abraça e que aceita
aquela que arde, que chama, chupa, beija, morde e cheira
tu herdou de todas nós mais velhas 
o sagrado ardor da flor sob teu ventre
saborosa e saudável flor de quatro pétalas e um botão sensível

te ensino a ser doçura
quando a dor chega amarga nos dias de loucura
te ensino a ser luta
quando o abuso bate na porta do seu lar
te ensino a ser nua
quando o afeto e o desejo se juntam na sua cama
te ensino a ser lua
quando as mudanças da vida demandam mudanças também suas

não conheço ninguém que nunca tenha levado pancada
quem bate costuma esquecer 
quem apanha sempre se lembra
mas a vida é uma coisa recíproca
quem bate também apanha

vou te ensinar, minha irmã
existe a receita da reciprocidade:
devolva o que não é seu
cada um 
só dá 
o que é realmente seu

já fui bruxa (foi assim que me chamaram)
já fui mulher de carne e osso, pele lisa e divina gordura
hoje sou da Imensidão
nem anjo, nem capeta, nem branca, nem preta
sou brilhante, sou sombria, sou terrível, sou beleza
percorro toda a escala de cinzas
roseira forte e florida, galhos armados de espinhos
sou de flexível dureza
virei tudo o que restou quando nos queimaram nas fogueiras

sou dessas que não vou baixar a cabeça
e também não vou olhar de cima
porque eu sei que no grande mapa da Imensidão
o vertical é o vício dos deuses e dos demônios
tão inacessíveis e distantes a nós que nos sujamos de poeira

onde eu piso, onde eu ando, não... 
onde eu percorro é horizontal
caminho do seu lado quando você me pede uma mão
e por isso que eu te digo 
não tem nada de errado em sangrar e chorar
quando alguém que você ama te abraça e te escuta e te ama de volta

não conheço ninguém que nunca tenha levado pancada
quem bate costuma esquecer 
quem apanha sempre se lembra
mas a vida é uma coisa recíproca
quem bate também apanha

vou te ensinar, minha irmã
existe a receita da reciprocidade:
devolva o que não é seu
cada um 
só dá 
o que é realmente seu

o seu amor ou o seu perdão
vale a pena dar
se você também recebe de lá
e se vier ódio ou desinteresse até aqui
a receita da reciprocidade te ensina,
minha irmã,
lance as palavras mágicas: 
NÃO, NÃO ACEITO, NÃO QUERO, NÃO VOU, NÃO

tudo que não é, pode ser
tudo o que é, não mais será...
vou te ensinar a agarrar a sua dor pelos cabelos
e em canção transformar

17 setembro 2022

paredes pintadas de dor

estou triste, muito triste
triste de chorar sozinho
triste de contorcer o corpo como quem torce um pano
pra arrancar todas as últimas gotas
de olhos já vermelhos, secos e inchados
triste de já não saber que horas são
nem quanto tempo passou desde que se deitou no chão

e com muita raiva
raiva feito um bicho preso com o ódio do lado de fora
raiva de querer atacar as paredes 
e tentar inutilmente rasgar toda a tinta com as unhas
arranhar tudo até ver as pontas dos dedos
em carne viva ralada e latejante
e as paredes às pinceladas vermelhas e absurdas
com a textura grosseira de casca de sangue, pele macerada e queratina

queria poder chorar essa tristeza toda de uma só vez
se isso a esvaziasse e eu pudesse sorrir de novo depois