31 maio 2023

a água dos teus olhos

a água dos olhos é sagrada
a água dos olhos é sagrada
a água dos olhos é sagrada

malditos são aqueles que tentam estancar as tuas lágrimas
covardes são aqueles que têm medo de chorar
quem essas joias perdeu é que lhes sabe o preço

brilham finas 
tão caras
brilham finas
tão caras
brilham lindas
tão raras
chove sim
a água dos teus olhos é sagrada

a cachoeira se chama coração
e o céu chove

oro mima
oro mimaio
oro mimaio
abadô ai ieie o

oro mima
oro mimaio
oro mimaio
abadô ai ieie o

#SonsdaVmbrA

terra a vista pt. 2

o novo porto rende pouco
o sol embraza e a saudade aperta
meu contramestre é marinheiro de longa data
se aproxima de mim e me alimenta com suas palavras

tô te vendo aí chorando
o coração apertado
sozinho, calado
os olhos tão molhados
feito rios cansados de correr

cadê o teu sorriso?
ficou lá na velha praia?
você foi buscar o seu destino
e achou
morreu faz tempo aquele marujinho
agora eu falo com meu capitão
homem feito
cheio de história e de cicatrizes
e todo esse novo povoado aqui vê como maneja com a mesma pegada
e dignidade
tanto a vassoura quanto a espada
que é vaidoso como um pavão
mas sabe deixar isso de lado
quando lhe colocam uma enxada na mão

o soldo hoje agora é pouco, eu sei
esse não é o nosso primeiro novo começo
por tantos portos eu com você já passei
por isso eu lhe agradeço seu simples copo d'água
e lhe agradeço sua dosezinha de cachaça
e lhe agradeço essa pequena banda de limão
porque eu vejo e eu sinto
como são ofertados de coração e com todo o respeito 

minha barba é mais longa 
meus cabelos são mais grisalhos
mas com você eu falo 
de navegante para navegante
com você eu falo 
de irmão para irmão
nesse mar salgado juntos navegamos
só que o navio é seu, você é o capitão
e por você na minha vida eu também sou grato
porque eu também recebo e sinto a sua gratidão
você é um daqueles que dá gosto
de lutar ao lado

a nova terra é dura
mas é benquista 

terra a vista pt. 1

solidão impera e o mar é revolto
ondas passam e batem sem dó
o casco é grosso
mas a tripulação balança
destemidos sim
mas não loucos

o silêncio é solícito
solidão impera e o mar se cala
tudo não passa de horizonte
o céu escuro é bússola
brilham a Lua e as estrelas

meu contramestre quebra o silêncio com um suspiro pesado
eu respiro seu desassossego 
e acendo para nós um cigarro
trago minha cabeça de volta pro convés
eu lhe digo então:

uma das coisas que mais me doem é sentir solidão
e cá estamos nós atravessando o oceano
buscando no horizonte um novo lar...
tem mesmo uma casa nos esperando do outro lado?

sim, meu irmão, não temos medo de tentar
não temos medo de falhar
para navegar novos mares é preciso saber voltar 
e saber voltar a ser criança 
mais uma vez

é preciso enfrentar o medo de se sentir patético
e saber qual é a força de se permitir ser tosco
por voltar a ser simples e comer pouco, 
racionar água e deixar de lado o velho conforto
até poder avistar o novo horizonte
e quando avistado
enfrentar um novo medo
pois que pra chegar num novo porto 
é preciso enfrentar o medo de lá pisar
serão eles hostis ou hospitaleiros?
e mesmo se bons senhores são
difícil é também chegar num novo porto e não ser ninguém
difícil é também se habituar ao desassossego de não ser ninguém
só encontra nova casa 
quem recebe o desconforto que é ser forasteiro

e o contramestre grita
terra a vista!

-27.02.23

arma viva

tua raiva é combustível 
elemento mágico de transformação
lançado no caldeirão das bruxas, das doidas e das putas
canta, grita e se escuta
vai sim, te escuta
o que tu acha que é loucura 
é pra nós a mais pura sabedoria
sabedoria para a nossa libertação
com a liberação de todas essas amarras tuas
que tentaram colocar nos nossos pulsos
para não sermos Lua
enquanto erguemos os nossos punhos
e nos fazemos Luta
enquanto tentam cerrar as nossas bocas
e soltamos o verbo
dizemos em alto e bom som: NÃO
não iremos nos calar
nem deixaremos te calar
tu irá dizer: SIM
sim a quem tu é
a quem tu sempre foi 
e a quem tu ainda será
e que bem abençoamos

canta, grita, chora
tua vida é isso
filho, meu amigo, meu irmão
vida de sentir
vida de sentir sem engano
eu também te amo

canta o teu canto
teu som é fogo
fogo que vem pra transformação
dá voz sim pros teus irmãos
dá voz pros que querem ser ouvidos
e não sabem direito como dizer
dá voz pros que foram rejeitados
dá voz a ti mesmo
tantas vezes recusado

você é uma arma viva em nossas mãos
tua língua é afiada
teus pés são ligeiros
tuas mãos são calejadas
teus ouvidos são apurados
teus olhos são aguçados
você prestou atenção e aprendeu tão bem
tu sabe ler as finas entrelinhas da letra miúda
tu sabe ver as sombras e os buracos de cada esquina
eu tenho orgulho de te chamar de meu menino

gira, gira, salta, pula, gira
canta, encanta, fala, grita
gargalha, bebe, fuma, enfeitiça
tu não é mais criança
nós bebemos no mesmo copo
nós bebemos no mesmo corpo
sentimos as mesmas dores e alegrias
nós dançamos por sobre os mesmos pés
pisando o mesmo chão
desafiando até as leis da física
ousando ocupar
o mesmo tempo e o mesmo espaço

suas mãos: minhas mãos
seu sorriso: o meu sorriso
seus cabelos: os meus cabelos
seu peito: o meu peito
seu ventre: o meu ventre
tu é o meu filho, o meu amado, o meu irmão
já te perdoei faz muito tempo
você é o barco que já mudou todas as peças
e que só dizemos que é o mesmo porque conhecemos o fio da história

falta agora só uma coisa
tu mesmo se RE-conhecer 
como o outro que tu já é

você é isso e tudo ainda a se descobrir
você é arma viva
voa
voarei contigo

#SonsdaVmbrA

cadê a rosa?

sentindo um vazio qualquer
sem o nome de ninguém
querendo só
o contato de alguém
lembrando de um passado acompanhado
mas também vazio

do que adianta andar sozinho?
o meu peito dói do mesmo jeito

cadê você? 
pra me enxergar
cadê você? 
pra poder me ver

quero sentir seu ventre tocar no meu
em cima dessa cama macia
que eu preparei tão bem
pro nosso cheiro se misturar
pelos lençóis

dói dói dói
um coração sozinho dói
cadê a rosa?
vem
pois eu entendo os seus espinhos

19 maio 2023

passa o facão

tô há duzentos anos
amolando o fio
do meu facão

o aço que já foi frio
hoje tá queimando
até o Sol

passa Ogum
abre os caminhos
abre os caminhos
passa o facão

dança Ogum
dança com os fio
dança com os fio
no terreiral

êêê Quizanga
ôôô Quizanga

#SonsdaVmbra

17 maio 2023

por tudo aquilo que eu já não sou mais

a vergonha me mastiga
absorvi coisas que não me cabiam
mentiras sobre quem eu seria

acreditei
por aprender que era o certo a se fazer
mas não mais
não mais
já caminhei demais
olho pra trás
e vejo um horizonte tão diferente
um horizonte passado 
tão diferente daquele do começo
um passado tão distante

minha história, essa estrada é única
preciso me lembrar:
percorri tantas páginas
já não sou mais o mesmo personagem do primeiro capítulo

por tudo de ruim que deixei pra trás
por tudo aquilo que eu já não sou mais
que no presente eu possa olhar 
pra quem eu sou
e me orgulhar...