29 junho 2013

Passageiro



          Passo eu em corredor da morte quando desço de um ônibus para ser atropelado. O pé no último degrau do veículo, o último suspiro. Ser eu um pedaço inteiro às vésperas de ser despedaçado. Passo eu, eterno passageiro, que me pergunto o que quereria com toda a eternidade à frente se soubesse que não morreria deveras ao morrer, que os destroços de um corpo são não mais que os destroços de um corpo, que me mantenho vivo apesar de se tanto dizer o contrário. Seria a morte a burrada de tantos quantos creem morrer?
            Vida... a vida eu descobriria viva apesar dos destroços daquilo que me veiculou? Vida... que me serviu de por onde nascer, chorar, mamar, crescer, dormir, talvez sonhar, sofrer, despertar, amar... — não, não amar, descobrir que se pode amar, e nessa descoberta subir perplexo em um ônibus e descer num degrau para a.... A vida que eu descobriria viva apesar da vida?
            Passamos nós, o tempo permanece tempo em toda sua passagem. Os dias passam e as horas umas após as outras se vão e quanto a isso não há novidade. Mas o que faz passar o tempo senão a nossa própria passagem e movimento?

23 junho 2013

12 lições de neurose

Lição n.1:
Quanto mais você “sabe”, mais você imagina.
Lição n.2:
Quanto mais você imagina, menos você sabe.
Lição n.3:
Quanto mais controla, menos tem controle.
Lição n.4:
Quanto menos controla, mais tem controle.
Lição n.5:
Quanto mais se afirma, mais se nega.
Lição n.6:
Quanto mais você nega, mais se entrega.
Lição n.7:
Todos NÃO estão olhando para você.
Lição n.8:
Você é que está olhando, não há nada escrito na sua cara.
Lição n.9:
Você bem que gostaria, mas não, você não tem telepatia.
Lição n.10:
Pode se aliviar, os outros também não têm telepatia.
Lição n.11:
Tenha certeza de que essa sua certeza é mera suposição.
Lição n.12:
Essa suposição apenas se arriscando se prova, ou não.

21 junho 2013

Espelho

Há muito tempo, sim, que não te escrevo.
Ficaram velhas todas as notícias.
Eu mesmo envelheci: Olha, em relevo,
estes sinais em mim, não das carícias
tão leves que fazias no meu rosto:
são golpes, são espinhos, são lembranças da vida a teu menino...
                                           (Carlos Drummond de Andrade)


Te escrevi agora, pois não, não foi nem ontem!
As notícias todas, novas ficaram.
Fecha os olhos, vê: sob a pele tu mesma rejuvenesceu.
Estes sinais em ti, sim, dos golpes
no teu rosto, que fazias tão pesados:
eram carícias, eram pétalas, eram atos da morte à tua anciã...

à Sulegña
20.06.2013

17 junho 2013

Paisagens



            As paisagens eram curvas: concavidades, convexidades, recuos, saliências. Paisagens a não ser só vistas, mas sentidas, cheiradas, provadas. Entradas e entrantes que caçavam um encaixe.
            O sol buscava seu ocaso, seu destino, mirava-se em mergulhar no oceano. As nuvens corriam mais rápidas, de um vento forte. Os movimentos cresciam, iam mais longe, mais adentro. O calor aumentava. As cores ao redor mudavam de tonalidade: brancuras, rosuras, vermelhidões. E então luz e sombras se alternavam. Eram sinais de um terreno a ser banhado.
            Abaixo, um tronco verdejante e uma grossa raiz, serena, sem pressa, adentrava a terra, passo a passo, um de cada vez, a provar a umidade, a sentir a calidez, a perceber as asperezas, as invaginações do interior. Uma noite abaixo-solo era encontrada. O útero tão próximo, o útero tão quente da terra, onde tesouros são semeados, onde a vida é certa, onde milhões se atiram ensandecidamente. Era voltar ao início do início da vivência.
            Um tropel de brancas nuvens se amontoava. Um jorro estava próximo, uma tempestade se formava. Um rumor trovejante era ouvido, elétricos suspiros cortavam o espaço. Todas as raízes abraçavam a terra, agarravam-na, apertavam-na, preparavam-se, preparavam-na, pressagiavam o estouro, o raio branco vindo da abóboda. Já não existia mais calma: eram voltas revoltas, ventos movimentos, fragores fulgores. Folhas e galhos se chocavam e se misturavam se apartavam e se reuniam se confundiam e se embaraçavam. Sussurros, sibilos, estalos. Soluços, bramidos, chiados.
            Golfaram firmes fecundantes cristais celestes..... numa vasta cortina branca. Os espaços se alargavam, davam espaço às embainhações líquidas. A terra fremia ante essas entradas mornas, cachoeiras de um rio claro que escorria. O encontro das matérias era forte, terremotos perpassavam os caminhos.
E o horizonte se abria...
                                    e os ventos cessavam... 
                                                                         e o sol queimava... 
                                                                                                        e a terra ardia...

02 junho 2013

Sobre um texto de alguém que escreve para si mesmo



Há muito desisti da pretensão de ser escritor ou poeta. Este texto, com certeza, mesmo que venha a ter algum primado estético ou mostre que o autor tentou debilmente encontrar uma expressão mais artística, este, não será literário. Será algo que alguém escreve para si mesmo. E, como tal, será provavelmente jogado no fogo, assim como os cinco grossos tomos de versos do Coronel Aureliano Buendía, da vila Macondo, os quais “não passam de coisas que alguém escreve para si mesmo”.
Com certeza, para outro leitor que não eu mesmo será extremamente enfadonho, por isso é melhor parar de ler agora mesmo. Não tentarei ser engraçado nem belo, não pretendo comover nem chocar. Para que escrever então, se não é para o público? Por que perder horas gastando a mão e o olho, se não é para alguém apreciar? Talvez um pouco de insônia seja a resposta. Assim, logo se vê, este será um texto de alguém que não encontrou nada melhor para fazer. Já disse, são palavras de alguém que escreve para si mesmo.
Várias vezes vi jovens lendo em sala de aula poemas seus. Nunca cheguei a tal atrevimento, nem no tempo em que me achava poeta. Como não enxergamos a feiúra de nossos próprios filhos! Projetamos neles o que somos ou o que queremos ser: belos, inteligentes e interessantes. Por que tornar público um texto no qual você nada diz para o outro, em que a mensagem não passa de, praticamente, um “Oi, eu sou fulano, assim assim assado, olha como sou poético (belo, inteligente e interessante)”.
Meu jovem, para um texto ser literário tem de nos dizer algo, tem de trazer algo para o outro... Se não, nem se dê ao esforço de perder a vergonha de arrancar seu texto de seu querido diário. Porque não passará disto, palavras que alguém escreve para si mesmo. Mas se a idéia é essa, dizer algo, não para nós leitores, mas para si mesmo, muito bem, dispense seu analista e faça a sua própria literaterapia. Só não venha importunar-nos com sua bela, inteligente e interessante subjetividade. Não se iluda achando que é essas três coisas, você não é um texto literário.
Os grandes escritores, estes, que nos ensinam algo com sublime sadismo, estes são cruéis o bastante para nos dizer quem somos, revelando-nos o que temos de grave e constante, desanestesiando-nos com suas astonishing frases. Estes escritores - quem já leu Guimarães Rosa, Dostoievski, Borges ou Fernando Pessoa e seus outros, sabe do que estou falando - desde pequenos se alimentaram dos grandes escritores. Eles têm a humanidade com eles. Quando falam, é nossa voz que escutamos. E é o que machuca e encanta.
Mas um texto autoterapêutico, como este aqui, enfada. Ficamos logo querendo pular pro último parágrafo e ver se pelo menos o autor tentou finalizar com uma tirada esperta. Ainda assim, e com freqüência, uma tal autopsicoprofilaxia dá-nos um cansaço e apatia, ou no mínimo compaixão quando a alma é caridosa. Uma alma assim entende: “É, essa pessoa está querendo desabafar...”.
Escrever é declamar-se. O problema é que dificilmente se tem a humanidade consigo, ou pelo menos um pedacinho dela, que se fosse mostrado iríamos nos espantar com o belo e doloroso de quem nós somos. Declamar-se pode ser interessante para o seu analista; aliás, não é isso o que ele quer de você o tempo todo? Leia seus textos para ele, com certeza os achará belos, inteligentes e interessantes. Os analistas geralmente têm muito amor no coração, pessoas generosas.
Ah, não faz análise? Então pegue seus textos e guarde numa gaveta por algumas semanas, ou alguns meses, ou dependendo de como sua vida andar. Quando ocorrerem mudanças, releia-os. E repita o gesto arquetípico do Coronel Aureliano Buendía.

 
por Umbelino Neto27.06.2008