23 agosto 2016

Fogueiras, águas, poeira

            Tudo é feito as águas do rio Heráclito... Afinal, o que é permanente nessa vida? O que me parece fatal e sério agora, passa e perde o valor – cedo ou tarde.  Aquilo que trazia medo fica pequeno e some, simples sombra. Parece que tudo é água que escorre ou seca, poeira sobre a mesa e um sopro. Há uma terra por sobre onde esse rio corre? Há uma mesa por sobre onde essa poeira junta? Há isso que sempre esteve e que é apesar de?
            Apesar do nome que lhe deem ou do nome que eu lhe dê... isso que permanece, nisso posso me apoiar, posso ver, sentir, tocar? E se pergunto é porque não sei o que é. Sei que é tudo o que não vejo, não sinto e não toco, porque o que vejo e sinto e toco passa e vai, feito vela pela noite. E isso que parece a terra sob a água, não sei o que é, mas ainda assim a isto me refiro, buscando palavras que apenas dizem o que parece ser.
         Essa mesa empoeirada cuja planura não tem forma, porque palavras não poderão descrevê-la, porque palavras são artifício nosso, porque são fogueiras que mantemos acesas não deixando de lhes deitar lenha, isso que não posso ver porque o que vejo vejo com os olhos e fecho os olhos como os abro e as coisas aparecem e somem e se acendem e se apagam e tudo vai como vem, isso que não posso sentir porque sentir é tudo que me resta se nada me sobra e ainda assim esse sentir passa e muda, isso que não posso tocar porque só tenho pele e tendões e nervos e vísceras, isso é só vazio que circunda e  preenche, ponto de onde posso tudo olhar e ver tudo ir, tudo rodar, tudo escorrer, janela de onde vejo a chuva cair e evaporar.
            Isso são fogueiras, águas, poeira.

Um comentário:

  1. Très bien, mon ami. Texto muito interessante. Isso me lembrou as minhas leituras de Ortega y Gasset. Ele nos explica que em relação ao homem só existe uma coisa permanente: a própria mudança. Esse conjunto de mudanças é a História, é a Vida. Um dos papéis da Poesia é tornar eterno estes pequenos momentos de mudanças, trazer-nos um sentido sobre algo que não tem sentido. A poesia, de modo lírico e reflexivo, nos salva constantemente desse vazio diário. Segundo o poeta Francisco Carvalho: " A poesia não morreu ainda. O homem é que está vivendo aos pedaços." Continue nos presenteando com esses singelos e magníficos aforismos. Charles Ribeiro.
    http://charlesdedaluscultural.blogspot.com.br/

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