18 setembro 2022

a receita da reciprocidade

meu nome é Lua Nova das Nove Almas
fiz do fogo vivo da fogueira a minha morada
uma monstruosidade que me impuseram
há muitos séculos quando me arrastaram de casa
e me arrancaram da cara 
a pele, a carne, os cabelos e a própria cara
e qualquer resquício de uma passageira vaidade

hoje eu me banho no fogo
aprendi a ser fogo
pois me refiz no fogo da recriação
minha fogueira queima no ventre e no peito
cuspo fogo e eu grito
ecos da minha liberdade de ser quem simplesmente sou
sou por todos os séculos que foram, que estão sendo e que virão
e que já chegaram e passam e vêm e vão

minha fogueira ainda brilha 
e aquece os corações e camas frias das minhas irmãs
se até uma atrocidade você sofreu, eu te digo: você não está sozinha
eu também
eu também é o lema de todas nós
nesse mundo reinado pelas cagadas e destemperanças dos reis-criança
que nos deixam a iniquidade de herança 
mundo onde pesa muito mais o lado macho da balança

não conheço ninguém que nunca tenha levado pancada 
quem bate costuma esquecer 
quem apanha sempre se lembra
mas a vida é uma coisa recíproca
quem bate também apanha

vou te ensinar, minha irmã
existe a receita da reciprocidade:
devolva o que não é seu
cada um 
só dá 
o que é realmente seu

eu queimo e ardo e a tua raiva vou alimentar
eu sei que isso te incomoda, irmã
mas também sei que vai te mobilizar
na direção do que é seu
da vida sua
da sua própria vida
pra tu aceitar a tua face impura

podem me chamar de bruxa
danço leve na corda bamba 
da sanidade e da loucura
te ensino a ser puta, a ser filha da puta e puta velha
te ensino os mistérios da putíssima trindade
de mulher baranga, de mulher refinada, de mulher que deixa saudade
aquela que cala, que ouve e que aconselha
aquela que afaga, que abraça e que aceita
aquela que arde, que chama, chupa, beija, morde e cheira
tu herdou de todas nós mais velhas 
o sagrado ardor da flor sob teu ventre
saborosa e saudável flor de quatro pétalas e um botão sensível

te ensino a ser doçura
quando a dor chega amarga nos dias de loucura
te ensino a ser luta
quando o abuso bate na porta do seu lar
te ensino a ser nua
quando o afeto e o desejo se juntam na sua cama
te ensino a ser lua
quando as mudanças da vida demandam mudanças também suas

não conheço ninguém que nunca tenha levado pancada
quem bate costuma esquecer 
quem apanha sempre se lembra
mas a vida é uma coisa recíproca
quem bate também apanha

vou te ensinar, minha irmã
existe a receita da reciprocidade:
devolva o que não é seu
cada um 
só dá 
o que é realmente seu

já fui bruxa (foi assim que me chamaram)
já fui mulher de carne e osso, pele lisa e divina gordura
hoje sou da Imensidão
nem anjo, nem capeta, nem branca, nem preta
sou brilhante, sou sombria, sou terrível, sou beleza
percorro toda a escala de cinzas
roseira forte e florida, galhos armados de espinhos
sou de flexível dureza
virei tudo o que restou quando nos queimaram nas fogueiras

sou dessas que não vou baixar a cabeça
e também não vou olhar de cima
porque eu sei que no grande mapa da Imensidão
o vertical é o vício dos deuses e dos demônios
tão inacessíveis e distantes a nós que nos sujamos de poeira

onde eu piso, onde eu ando, não... 
onde eu percorro é horizontal
caminho do seu lado quando você me pede uma mão
e por isso que eu te digo 
não tem nada de errado em sangrar e chorar
quando alguém que você ama te abraça e te escuta e te ama de volta

não conheço ninguém que nunca tenha levado pancada
quem bate costuma esquecer 
quem apanha sempre se lembra
mas a vida é uma coisa recíproca
quem bate também apanha

vou te ensinar, minha irmã
existe a receita da reciprocidade:
devolva o que não é seu
cada um 
só dá 
o que é realmente seu

o seu amor ou o seu perdão
vale a pena dar
se você também recebe de lá
e se vier ódio ou desinteresse até aqui
a receita da reciprocidade te ensina,
minha irmã,
lance as palavras mágicas: 
NÃO, NÃO ACEITO, NÃO QUERO, NÃO VOU, NÃO

tudo que não é, pode ser
tudo o que é, não mais será...
vou te ensinar a agarrar a sua dor pelos cabelos
e em canção transformar

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