16 outubro 2022

versos e versões

vou te ensinar, boneca, uma magia de visão 
magia de visão do Eu
poder reflexivo,
do espelho, espelho meu
é o poder de cada um 
pra ver dentro de si 
a verdade de cada um
e assim desfazer as versões da verdade 
que cada um só quer ver
e aumentar a tua força de encarar
o que tu pouco suporta enxergar
vamos lá

você vai enxergar-se... vividamente enxergar-se...
em pleno meio dia
abrir todas as janelas e parar
arrancar todas as roupas e capas
e se olhar diante do espelho limpo, nudez
encarando a própria cara, 
sem submissão e sem altivez
para você enxergar o seu próprio tamanho
você se ver do tamanho que você é

ninguém contou ainda, mas foi essa a magia que o Pinóquio fez
quando percebeu que ser criança era apenas o primeiro passo para ser humano
isso foi na noite que o velho Gepeto morreu, a casa em penumbra
apenas iluminada pelas velas em candelabros e uma lareira muito pequena, da qual seu pai nunca deixava ele chegar muito perto
e esse menino de não se sabe mais quantos anos agora estava sozinho no mundo, 
foi o dia que ele viu que estava precisando ser alguém na vida
a fada madrinha tinha se aposentado e nunca mais voltou de Arcadía
então aquele antigo marionete chorou
chorou de uivar, se contorcer e se arranhar todo, 
caído abraçando as pernas, sendo pela primeira vez o feto que ele nunca foi,
o pequeno sentia como farpas vertendo pelos olhos, 
como se seu cérebro e coração ainda fossem feitos de madeira
e o pobre Pinóquio se viu no espelho
os olhos vermelhos, o rosto todo contraído
"POR QUE AQUELE VELHO ME DEIXOU SOZINHO?!"
"POR QUE ELE FEZ ISSO COMIGO?!"
"E TU FADA MALDITA?! VAI ME ABANDONAR LOGO AGORA QUANDO EU MAIS PRECISO?!"
e Pinóquio se olhou no espelho, pela primeira vez com nitidez
como se o espelho antes tivesse todo manchado e agora alguém tivesse polido
e ele se viu
e viu que seu corpo era macio e liso, 
mas por cima de seu rosto as lágrimas quentes e o calor do rosto ardente em revolta faziam derreter uma cera
o menino então viu, que seu couro humano era coberto por uma máscara
a magia da fada havia enganado a todos
ele só havia sido transformado de um boneco de madeira em um boneco de cera
e agora ele finalmente entendia porque seu pai Gepeto a cada dia, naturalmente, envelhecia
enquanto ele continuava uma perpétua criança
cheio de medos, cheio de manias
cheio de birras, cheio de fofurinhas
sem pelos na cara, nem no corpo, nem nas partes 
diferente de seu pai, homem feito e já então se desfazendo pela ação do tempo
que inclusive, por ser homem, fedia quando não se banhava
enquanto ele, menino, continuava sempre com um bom cheirinho
sempre energizado, sempre brilhando, sempre pra lá e pra cá
como uma vela acesa

para enxergar-se assim é preciso ter olhos
os próprios olhos
e a coragem visceral de um animal completamente encurralado

quando bota pra fora e diz pros outros, 
a verdade de cada um é apenas um desejo... 
o desejo de que os outros enxerguem como você enxerga. 

e assim a vida segue... 
cada um com seus próprios versos, 
cada um com suas próprias versões.

e assim seguimos, 
apenas bastando seguir 
um dia de cada vez...

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