04 março 2023

a história de todos os filhos que eu não tive

a minha história é a história de todos os filhos que eu não tive

o primeiro foi num ano que não tinha nem ano
ano anterior a qualquer calendário humano
um ano sem ano
eu fui catada na encruzilhada 
lado direito da estrada...
ele apareceu do nada
me deu na cabeça uma pancada
e quando acordei eu já tava grávida
me senti transpassada, desesperada e enojada
então arranquei aquela mudinha com a minha adaga
e segurei nos braços meu João do Nada
e adormeci sem saber 
se era pela monstruosa mágoa
se era pelo sangramento 
ou se por olhar aquela criaturinha destroçada...
é... 
talvez... 
talvez por um tanto de cada
e foi assim o fim dessa primeira estrada

me chame
me chame do que quiser
pois eu só fui mais uma
com a história dessa mulher

me chame
me chame do que quiser
pois eu só fui mais uma
com a história dessa mulher

meu segundo filho nasceu em torno do século quinto antes do Nazareno nascer
ainda me pergunto porque vaguei por tanto tempo sem rumo
desde o primeiro até o segundo
quanto tempo passou? não sei
por onde andei? não sei
o que eu fiz? não sei
com quem me encontrei? não sei
que caminhos cruzei? não sei
não lembro de nada

me chame
me chame do que quiser
pois eu só fui mais uma
com a história dessa mulher

me chame
me chame do que quiser
pois eu só fui mais uma
com a história dessa mulher

só sei que ali pelo século quinto antes do Crucificado 
eu era uma completa transtornada
vidinha de bosta, menina raquítica, uma folhinha ao vento
pura discórdia, puro ódio, puro lamento
andando por qualquer aonde 
tirando de onde fosse um sustento
e como mulher de época... cinco vezes violada
e na quinta violação ficou de presente a criança no ventre
de algum navegante sem rosto nem nome 
em alguma ilha largada no mar Mediterrâneo
e enquanto meu segundo João do Nada novamente crescia
a minha vontade de comer totalmente sumia
recusava o pão, negava o peixe, 
no pedaço de queijo cuspia
diante do vinho vomitava
e de menina magra que já era 
virei um esqueleto coberto de couro com uma bola de barriga
os sacerdotes diziam que matei a nós dois de fome
hoje isso já se sabe que tem nome
mas na época eles resumiam à ação divina
mas eu era já a própria perdida
mãe de criança nenhuma

me chame
me chame do que quiser
pois eu só fui mais uma
com a história dessa mulher

me chame
me chame do que quiser
pois eu só fui mais uma
com a história dessa mulher

a terceira criança teria sido uma menina
lá talvez pelo século dois já bem depois 
da misteriosa concepção de Maria
aquela menina sem pai nem mãe
que recebera sem licença a semente de um velho dono de qualquer coisa
e foi assim... porque eu também era menina
mais uma vez sofri uma investida
de um lanceiro de Roma nas idas e vindas
entre a minha casa e a da minha amiga

e eu me perguntava por quê
o que eu tinha feito pra merecer tamanha dor?
e tentava entender de onde vinha tamanho rancor 
do velho barbudo lá chamado de Senhor...
se a única coisa que eu fizera de errado 
foi, como toda criança, desobedecer de vez em quando a minha mãe
por não chegar em casa antes do entardecer 
por querer ir ver uma vizinha por quem me apaixonara
embora nem soubesse ainda que isso tinha nome ou que era possível
ou talvez o meu pecado fosse simplesmente ter nascido mulher
no país e na Era errados

o lanceiro era conhecido pela cidadezinha
e sonhava que nascesse um macho 
que fosse a sua cara cagada e cuspida
mas quando veio ao mundo a bebezinha
ele tomou da lança e disse que não era dele minha joiazinha
e a jogou contra o chão esmagando sua cabecinha

no terceiro dia, sangrando por dentro
me levantei e tomei da lança 
que lhe enfiei no meio da espinha
no momento que eu o vira já forçando seu espinho
no ventre de outra menina
e jurei sobre seu cadáver esburacado e inerte
que nunca mais aceitaria 
nenhuma semente que me fosse forçada

acontece que a tropa do lanceiro jurou represália
e pra não sofrer pior desgraça
me atirei do alto de uma alta escarpa
e do outro lado ainda encontrei o desgraçado rindo da minha cara
o que me fez querer aprender a também aprender
a lutar também do outro lado
então procurei quem me ensinasse arte e feitiçaria
porque a guerra agora era entre óleo quente e água fria

me chame
me chame do que quiser
pois eu só fui mais uma
com a história dessa mulher

me chame
me chame do que quiser
pois eu só fui mais uma
com a história dessa mulher

mas por algum motivo que eu não lembro
nasci machinho não sei quantas vezes 
sempre espinhoso como um ouriço
ligeiro como corisco
e fiz todo tipo de barbaridade 
de machado e de faca pelas encruzilhadas
me juntando com qualquer grupo que roubasse e matasse pelas beiras de estrada
arrumando briga com qualquer um que tivesse cara de soldado
e morri cedo todas essas vezes, antes mesmo de criar pelo na cara
morta por outros que só viam ali mais um lixo morto de fome
que não merecia nada mais que o aço atravessado pela barriga ou pela cara
eu fui quatro vezes eu mesma um João do Nada
por não sei quantos séculos desperdiçados
sem laços, nem raízes, um rebento desgarrado

me chame
me chame do que quiser
pois eu só fui mais uma
com a história dessa mulher

me chame
me chame do que quiser
pois eu só fui mais uma
com a história dessa mulher

até que enfim fui certa vez adotado
por minha mãe velha e outros antepassados
e voltei como eu era 
esculpida e princesa
pele lisa e preta
filha de família e de nobreza 
das terras ricas do oeste de África
onde finalmente aprenderia a ser gente
a ser fina, a ser de Arte, 
de movimentar força pelas palavras
de canto forte e de fortes encantos

fui criança feliz, fui 
me curei de tanta mágoa ao lado das minhas mães e irmãs amadas 
onde aprendi sobre os elementos
o que as águas limpam e resfriam
o que o fogo desmonta e transporta
o que o ar anima e movimenta
o que a terra dá, tira e sustenta
do vermelho, do amarelo, do branco e do preto
e os mistérios do sangue, do suor e do excremento
dos metais e das pedras, 
das madeiras e ervas
dos bichos de casa e das feras
do que se faz no amor
e do que se faz na guerra
e muito óleo quente cantou
por cima da água fria
por muito tempo assim
feliz, sem dor nem agonia

até que vieram os portugueses
e nos levaram como cabras
e tentaram nos emprenhar como vacas 
mas antes eu matei dois a pedradas 
e depois morri eu mesma
a mando do padre 
de morte matada  
pedra sob pedra, esmagada a pedradas
enviadas pelos santos sem pecado
como a puta adúltera da parábola 

anedota que adoram contar com um final feliz
daquela época que o Nazareno fazia as suas presepadas
mas que agora só servia de bode expiatório uma vez por semana
pagando a conta que eles fazem de segunda a sábado
passando o pano sobre todas as suas cagadas
enquanto nós, as mais fracas, aguentamos
os seus destemperos, os seus desmantelos, as suas desgraças
os seus gritos, nos mandando ficar caladas
os seus ritos, de culto ao pinto e à barba
os seus mitos, de que são só cabeça sem lágrimas
os seus juízos, tramando planos de destruição em massa
sob as bênçãos de um pai vingativo 
que abandona a carrascos o próprio filho para ser torturado
e o Crucificado segue chorando e sangrando 
amado, admirado, louvado na sua tortura
seguindo por todos esses séculos 
ali apregado pelos pés e pelas mãos tão secas
sem uma de suas criaturas se dispondo a tirar ele dali
achando tão lindo seu Cordeiro Imolado amarrado no alto
banhado em mijo, vinagre e sangue
chagas abertas
de olhos arregalados 
coroado de espinhos por uma piada sádica
e se perguntando como criança assustada
"Meu Pai, Meu Pai, por que me abandonaste?"

pois eu te digo, seu moço
agora aguente, oh filhão da imaculada
é esse o zé povinho com quem tu andas?
que te ama, que te louva e depois te mata?
pois eu te direi quem és...
o que também diz muita coisa sobre o pai que tu tens... 
ausente na hora que tu mais precisava
tu perguntou naquele dia do teu calvário
e até hoje ele te deve 
se não uma resposta... pelo menos um pedido de desculpas
e foi esse o seu legado
por longos séculos herdado
o exemplo que ele deixou para todos os machos
que levantaram muralhas, forjaram espadas e abriram estradas
matando, queimando e batizando em seu nome 
pios agindo impiedosamente... 
apagando os pagãos em genocídios 
agindo por fim à sua própria imagem e semelhança

me chame
me chame do que quiser
pois eu só fui mais uma
com a história dessa mulher

me chame
me chame do que quiser
pois eu só fui mais uma
com a história dessa mulher

só assim para entender como e porquê
outros tempos depois
o meu quarto filho foi cozinhado 
meu corpo feito panela no churrasco do Pai do Diabo 
o divino maioral, que se achava tanto que proibiu até seus filhos de chamá-lo pelo nome
e fui morta como cortesia da impecável Inquisição
nas últimas fogueiras que tiveram a pachorra de acender
antes de se entender
que o sexo frágil precisava só de um pouco mais de disciplina e catequização

pois nessa época eu fui a mais discreta
nem bonita, nem feia, 
nem rica, nem plebeia
nem branca, nem preta 
comparada como bicho de carga: mulata
filha do sapateiro do filho do barão
alforriada, mas escrava dentro de casa
ou seja
eu não era ninguém e não queria ser nada
pra ver se finalmente eu teria uma vida pacata
porque uma coisa eu só queria
minhas ervas, minhas irmãs e minhas cabras
uma casa na beirada da estrada
filha de um trabalhador qualquer
que trabalhava pra um outro que também não era ninguém
mas que diziam ser muita coisa 
porque levava no nome o sobrenome de alguém 
que era filho de alguém que foi sobrinho de alguém 
que alguém disse que valia alguma coisa 
porque era parente de El Rei Dom João
e o meu pai sempre repetia como era uma benção 
ter seus sapatos calçados por alguém tão nobre e especial 
como o filho do senhor barão

o filho do barão, que se achava o rei da porra toda,
e como todo rei queria conseguir mais uma conquista,
foi colonizar o ventre de mais uma menina
escolheu essa louca aqui
que sempre seguia tão discreta pelos cantos
entrando muda e saindo calada 
remoendo dentro si já seus próprios pesadelos

mas o bonitão não sabia ouvir não
e chegou de surpresa na minha morada
abrindo de volta todas as cicatrizes que já tinham sido fechadas, 
de todas aquelas violações passadas e esquecidas...

e eu chorei todas as lágrimas que cabia na cara
e ainda me fizeram casada com o lindo que me violentara
porque minha barriga crescia e todos sabiam 
que mulher sem marido...
ou era bruxa ou era puta ou era freira
aquelas casadas com o capeta e essas com um velho psicopata

sim, porque quem tem coragem de mandar matar seu filho mais querido apenas para ter uma prova de amor e lealdade? 
uma criança precisa mesmo ver seu próprio pai lhe passar a ponta da faca na goela? 
que canção de ninar Isaac ouviu dos anjos naquela noite?
eu ouvia essa história de meu pai quando tentava justificar porque me entregara ao homem que me violentara
e eu perguntava como pode um pai ameaçar sua própria criança com uma adaga
e diante dessas palavras a resposta vinha na forma de um tapa na cara
melhor uma pancada do que ser queimada por proferir tão absurdas heresias, ele dizia
e num certo dia de muito vinho e de muitas grosserias
e enquanto minha barriga ainda crescia
tomei do meu senhor, meu admirado marido, a adaga 
e fiz como os patriarcas ensinaram:
cortei-lhe a garganta e fiz dele o meu cordeiro imolado
chorei de tanto rir e fui dali mesmo arrastada pelos anjos
para a festa que se armou na praça
e com meu bebê ainda no ventre
tive o corpo pelo fogo descarnado

depois se viu o horror de um pequeno esqueleto no meio da minha ossada
o bispo se enojou com a história que lhe foi contada
e advogou para que penas mais brandas fossem aplicadas
como apenas acorrentar em celas as loucas endemoniadas
e chamar aos cuidados um médico de alienados

me chame
me chame do que quiser
pois eu só fui mais uma
com a história dessa mulher

me chame
me chame do que quiser
pois eu só fui mais uma
com a história dessa mulher

e segui assim legião de coisa nenhuma
mulher como tantas outras
que eles queriam que fosse feita só pra se calar e aguentar
aguentar e se calar
ou morrer de fome 
ou de pedrada

é eu nunca fui mãe... 
não tive esse fardo 
mas sempre vou adotar
e carregar no colo
e iluminar e aquecer com minhas chamas
e acalentar e ninar com meu canto
quem me chama e me pede uma mão
meus filhos são os órfãos
sou mãe dos desgarrados

me chame
me chame do que quiser
pois eu só fui mais uma
com a história dessa mulher

me chame
me chame do que quiser
pois eu só fui mais uma
com a história dessa mulher

#SonsdaVmbra

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